Inimigo da Família
Mons. José Maria Pereira
Mons. José Maria Pereira
A Igreja, ao celebrar a festa da
Sagrada Família de Nazaré, no domingo da Oitava de Natal, quis evidenciar sua
solenidade e sua dignidade. A Sagrada Família se apresenta hoje no momento mais
íntimo e mais feliz próprio de cada família: aquele em que se alegra e se
completa com o nascimento do primeiro filho. Mesmo diante do clima de mistério
em que acontecia o nascimento de seu filho, Maria e José viveram os eventos de
sua família de maneira semelhante àquela em que vivem dois esposos pobres
comuns, mas que se querem bem.
Com esta festa, a Igreja quer, antes
de tudo, exaltar e reafirmar a dignidade da família da qual ela mesma recebeu o
Salvador; quer, além disso, ajudar-nos a refletir como cristãos sobre esta
realidade no seio da qual todos nós vivemos, à qual, aliás, devemos a própria
vida. Quero refletir com vocês sobre qual é a vontade de Deus em relação à
família, vontade que nenhum referendo pode anular e nenhuma lei humana pode
mudar; a qual é, em outras palavras, a ideia de família que tinha em mente Deus
quando, no princípio criou o homem e a mulher e os abençoou dizendo “Frutificai
– disse Ele – e multiplicai-vos [...] O homem deixa o seu pai e a sua mãe para
se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne” (Gn 1, 28; 2, 24).
A família deveria ser, pelo desígnio
de Deus, a continuação da Criação. É possível, hoje, crer e cultivar uma ideia
tão alta da família sem passarmos por uns iludidos que vivem fora de seu tempo?
É possível ver ainda na família o berço da vida e a fonte do amor, numa época
em que esta tão frequentemente é posta no banco dos réus, tão frequentemente
teatro de fatos horríveis? Nós, cristãos, devemos responder: Sim, é possível.
Aliás, é necessário! É exatamente este testemunho de otimismo que os crentes
devem hoje dar aos valores da Criação pela Palavra de Deus.
É possível que uma moça e um rapaz
se conheçam e percebam que se querem bem, um bem especial, diferente de
qualquer outro sentimento até então experimentado. É possível que seu amor
amadureça até tomar posse de todo o seu ser e os transforme da mesma maneira
como o fogo torna incandescente aquilo que aquece.
Alguém poderá dizer “qual é o preço
desta conquista?” Não será, talvez, o heroísmo ou até mesmo a santidade? Em
certo sentido, sim, porque cada vida cristã autêntica é um chamado ao heroísmo,
à santidade. Mas o real segredo é este: não perder nunca o contato e não se
separar nunca da raiz da qual nasceu um dia a família, isto é, o amor. Este, o
amor, é a realidade que faz nascer e que somente pode manter em vida a família.
O amor parece impossível porque se pensa logo, mas sem razão, num tipo de amor
que por si mesmo é instável, finito, efêmero, isto é, destinado a perecer como
todas as coisas e todos os sentimentos humanos. Mas não é assim se o amor é
“alimentado” progressivamente pela caridade. Sim, a caridade, aquela do
próximo, aquela que constitui “o primeiro e o maior dos mandamentos” deve
encontrar o primeiro e o principal campo de ação da família. Por amor ao
próximo deve se entender o amor pelo próximo mais próximo, isto é, por aquele
que está ao nosso lado.
Quando a caridade (aquela que a
Bíblia chama “ágape”) vem completar o amor humano (aquele que os gregos chamam
“eros”), então os frutos são maravilhosos. São Paulo os elenca numa de suas
cartas (1Cor 13, 4ss): “A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem
inveja. A caridade não é orgulhosa, não se irrita”. Recorda isso, em forma de
conselho, na carta aos Colossenses 3, 12-21: “Revesti-vos de sincera
misericórdia, de bondade, humildade, doçura, paciência. Suportai-vos uns aos
outros e perdoai-vos mutuamente, toda vez que tiverdes queixa contra outrem”.
Só este tipo de amor – que não é
mais apenas atração física nem sentimentalismo, mas verdadeiro dom de si mesmo
– é capaz de superar a crise em que hoje em dia estão vivendo tantas famílias e
que divide uma geração de outra, isto é, os filhos dos pais.
Nossas famílias sejam sustentadas
pelo amor e vivam no amor, pois assim existirá o perdão. Como proceder para
conseguir esta atitude que sabe perdoar, que sabe dar em silêncio e sabe
esquecer-se? Ela não é apenas efeito de escolha acertada ou de sorte, também se
a escolha do próprio cônjuge não deixe de ser muito importante. É fruto,
sobretudo, de generosidade; é a vitória contra o egoísmo, inimigo invisível,
mas fatal, do amor e, portanto, da família. Mas também, e, sobretudo, fruto da
graça e da ajuda de Deus. Há um hino que se canta na Igreja que diz: “Onde
reina o amor, Deus aí está”. O inverso também é verdadeiro: onde está Deus, ali
reina o amor. Na família onde Deus está presente pela fé dos pais, porque se
ouve a Palavra de Deus, reza-se junto, observa-se sua lei, o amor não faltará,
ou poderá renascer depois de cada crise. Essa é a verdadeira razão de nosso
otimismo. Por isso, rezemos todos à Sagrada Família de Nazaré: “Ó Deus de
bondade, que nos destes a Sagrada Família como exemplo, concedei-nos imitar em
nossos lares as suas virtudes para que, unidos pelos laços do amor, possamos
chegar um dia às alegrias da vossa casa. Amém!”.