Vocação e prática da caridade
Mons. José Maria Pereira
No
Evangelho (Lc 4,21-30) encontramos Jesus na Sinagoga, onde Jesus disse:
“Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir. Todos
davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de
encanto que saíram as sua boca” (Lc 4,22). Mas, os nazarenos logo se
deixaram envolver em considerações demasiadamente humanas: E diziam:
“Não é este o filho de José? E se era realmente o Messias, porque não
fazia ali os mesmos milagres que tinha feito em outros lugares? Não
tinham igual direito os seus conterrâneos?
Pressentindo os seus
protestos, Jesus responde: “Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria”
(Lc. 4,24). Mas, nem por isso muda de atitude. Pelo contrário procura
demonstrar-lhes que o homem não pode ditar leis a Deus e que Deus tem a
liberdade de distribuir os seus dons a quem quer. Recorda o caso da
viúva de Sarepta, a quem foi enviado o profeta Elias, com preferência a
todas as viúvas de Israel; e do estrangeiro Naaman único leproso curado
por Eliseu. Jesus quer fazer compreender aos seus conterrâneos que veio
trazer a salvação, não a uma cidade ou a um povo concreto, mas a todos
os homens, e que a graça divina não se vincula a uma pátria a uma raça,
ou a méritos pessoais, mas é totalmente gratuita. A oposição dos
nazarenos torna-se violenta. Cegos pela pequenez de suas mentes e
despeitados por não conseguirem o que pretendiam, “levantaram-se e o
expulsaram da cidade”. Levaram-no até alto do monte..., com a intenção
de lança-lo no precipício (Lc 4,29).
Tal é a sorte que o mundo
guarda para aqueles que, como Cristo têm por missão o anúncio da
verdade. Confirma-o o episódio bíblico da Vocação de Jeremias (cf. Jr
1,4-5. 17-19). Deus tinha escolhido Jeremias como profeta, antes de
nascer, mas, ao tomar conhecimento, por revelação divina, quando jovem,
desta eleição, treme e, pressentindo futuras contrariedades, quer
recusar. Mas Deus anima-o: “Não temas porque estarei contigo para te
livrar” (Jr 1,8). O homem escolhido por Deus, para ser porta-voz da Sua
palavra, pode contar com a graça de Deus que se lhe antecipa e o
acompanhará em todas as situações. Não lhe faltarão contrariedades,
perigos e riscos, tal como não faltaram aos profetas e ao próprio Jesus.
Apesar disso, Deus também o anima, tal como aconteceu a Jeremias: “eles
farão guerra contra ti, mas não te vencerão, porque eu estou contigo
para defender-te” (Jr 1,19).
Numa das mais belas páginas das
Cartas de São Paulo (1 Cor 12,30 – 13,13), o Espírito Santo fala-nos de
umas relações entre os homens completamente desconhecidas do mundo
pagão, pois têm um fundamento totalmente novo: o amor a Cristo. Todas as
vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim
que o fizestes (Mt 25,40).
A virtude sobrenatural da caridade
não é um mero humanitarismo. “O nosso amor não se confunde com a atitude
sentimental, nem com a simples camaradagem nem com o propósito pouco
claro de ajudar os outros para provarmos a nós mesmos que somos
superiores. É conviver com o próximo, venerar [...] a imagem de Deus que
há em cada homem, procurando que também ele a contemple, para que saiba
dirigir-se a Cristo”.
O senhor deu um conteúdo inédito e
incomparavelmente mais alto ao amor ao próximo, destacando-o como
mandamento novo e verdadeiro distintivo dos cristãos. A medida do amor
que devemos ter pelos outros é o próprio amor divino: como eu vos amei;
trata-se, portanto, de um amor sobrenatural, que o próprio Deus põe em
nossos corações. É ao mesmo tempo um amor profundamente humano,
enriquecido e fortalecido pela graça.
Sem caridade, a vida
ficaria vazia... A eloquência mais sublime e todas as boas obras – se
pudessem dar-se – seriam como o som de um sino ou de um címbalo, que
dura um instante e desaparece. Sem caridade, diz-nos o Apóstolo, de
pouco servem os dons mais preciosos: Se não tiver caridade, nada sou.
Muitos doutores e escribas sabiam mais de Deus, imensamente mais, que a
maioria daqueles que acompanhavam Jesus – gente que ignora a lei -, mas a
sua ciência ficou sem fruto. Não entenderam o fundamental: a presença
do Messias entre eles e a sua mensagem de compreensão, de respeito, de
amor.
A falta de caridade embora a inteligência para o
conhecimento de Deus e da dignidade do homem. O amor pelo contrário,
desperta, afina e aguça as potências. Somente a caridade – amor de Deus e
ao próximo por Deus – nos prepara e dispões para entender Deus e o que
Deus se refere, até onde uma criatura pode fazê-lo. Quem não ama não
conhece a Deus – ensina São João -, porque Deus é maior. A virtude da
esperança também se torna estéril sem a caridade, “pois é impossível
alcançar aquilo que não se ama”; e todas as obras são vãs sem a
caridade, mesmo as mais custosas e as que comportam sacrifícios; Se eu
repartir todos os meus bens e entregar o meu corpo ao fogo, mas não
tiver a caridade, isso de nada me aproveita. A caridade não pode ser
substituída por nada.
São Paulo aponta as qualidades que adornam
a caridade e diz em primeiro lugar que a caridade é paciente. Para
fazer o bem, deve-se antes de mais nada saber suportar o mal.
A
paciência denota uma grande fortaleza. É necessária para nos fazer
aceitar com serenidade os possíveis defeitos, as suscetibilidades ou o
mau-humor das pessoas com quem convivemos. É uma virtude que nos levará a
esperar o momento adequado para corrigir; a dar resposta afável, que
muitas vezes será p único meio de conseguir que as nossas palavras calem
fundo no coração das pessoas a quem nos dirigimos. É uma grande virtude
para a convivência. Por meio dela imitamos a Deus, que é paciente com
os nossos inúmeros erros e sempre tardo em irar-se; imitamos Jesus
Cristo que, conhecendo bem a malícia dos fariseus, “condescendeu com
eles para ganha-los, à semelhança dos bons médicos, que dão os melhores
remédios aos doentes mais graves”.
A caridade é benigna, isto é,
esta disposta de antemão a acolher a todos com benevolência. A
benignidade só se enraíza num coração grande e generoso; o melhor de nós
mesmos deve ser para os outros.
A caridade não é invejosa. Da
inveja nascem inúmeros pecados contra a caridade; a murmuração, a
detração, a satisfação perante a adversidade do próximo e a tristeza
perante a sua prosperidade. A inveja é frequentemente a causa de que se
abale a confiança entre amigos e a fraternidade entre irmãos. É como
câncer que corrói a convivência e a paz. São Tomás de Aquino chama-a
“mãe do ódio”.
A caridade não é soberba. Sem humildade, não pode
haver nenhuma outra virtude, e particularmente houve previamente outras
de vaidade e orgulho, de egoísmo, de vontade de aparecer. “O horizonte
do orgulhoso é terrivelmente limitado: esgota-se em si mesmo. O
orgulhoso não consegue olhar para além da sua pessoa, das suas
qualidades, das suas virtudes, do seu talento. É um horizonte sem deus. E
neste panorama tão mesquinho, nunca aparecem os outros, não há lugar
para eles”.
A caridade não é interesseira. Não pede nada para a
própria pessoa; dá sem calcular o que pode receber de volta. Sabe que
ama a Jesus nos outros e isso lhe basta. Não só não é interesseira, mas
nem sequer anda à busca do que lhe é devido: busca Jesus.
A
caridade não guarda rancor, não conserva listas de agravos pessoais;
tudo desculpa. Não somente nos leva a pedir ajuda ao Senhor para
desculpar a palha que possa haver no olho alheio, mas nos faz sentir o
peso da trave no nosso, as nossas muitas infidelidades.
A caridade tudo crê, tudo espera, tudo tolera. Tudo, sem nenhuma exceção.
Podemos dar muito aos outros: fé, alegria, um pequeno elogia,
carinho... Nunca esperemos nada em troca, nem sequer um olhar de
agradecimento. Não nos incomodemos se não somos correspondidos; a
caridade não busca o seu, aquilo que, considerando humanamente, poderia
parecer que lhe é devido. Não busquemos nada e teremos encontrado Jesus.
Recorramos frequentemente à Virgem Maria, Ela nos ensinará a
relacionar-nos com os outros e a amá-los, pois é mestra da caridade.