Viver em Cristo
Mons. José Maria Pereira
Meditar as
Palavras de Jesus sobre a videira e os ramos significa refletir sobre a relação
que nos une com ele em sua dimensão mais profunda: Eu sou a vidra; vós, os
ramos. É uma relação até mais profunda que aquela que existe entre o pastor e
seu rebanho que meditamos domingo passado. No evangelho de hoje, descobrimos
onde se encontra “a força interior” da nossa religião (cf. 2Tm 3,5).
Pensemos na realidade natural que deu
origem a esta imagem. O que há de mais intimamente unido do que a videira e seu
ramo? O ramo é um fruto e um prolongamento da videira. Dele vem a linfa que o
nutre, a umidade do solo e tudo o que depois se transforma em uva, sob o calor
estival do sol; se não for alimentado pela videira, ela não pode produzir nada,
mas nada absolutamente: nem um raminho, nem um grão de uva, nada. É a mesma
imagem que São Paulo transmite com a comparação do corpo e dos ,membros: Cristo
é a Cabeça de um corpo que é a Igreja, da qual cada cristão é um membro (cf. Rm
12,4s;1Cor 12,12s). Também o membro, se está separado do resto do corpo, não
pode fazer nada.
Onde está o fundamento desta relação,
aplicada a nós homens? Não contraria nosso sentido de autonomia e de liberdade,
isto é, nosso sentimento de ser um todo e não uma parte? Este fundamento tem
uma base bem precisa que o apóstolo Paulo, com uma imagem tirada da
agricultura, chama de enxerto. No batismo, nós éramos videiras selvagens, fomos
inseridos e enxertados em Cristo (cf. Rm 11,16ss), tornamo-nos ramos da
verdadeira vide. Tudo isto pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5). Entre
o ramo e a parreira há em comum o Espírito Santo!
Qual é,
portanto, nosso papel de ramos? João, como vimos, tem um verbo predileto para
expressar esta unidade: “permanecer” (entende-se, unidos à videira que é
Cristo): Permanecei em mim e eu permanecerei em vós [...]; quem permanecer em
mim [...]. Permanecer unidos à videira e permanecer em Cristo Jesus significa,
antes de tudo, não abandonar os compromissos assumidos no batismo; não ir para
um país distante, como o filho pródigo, sabendo que se pode separar-se de
Cristo com uma decisão de momento, entregando-se a uma vida de pecado
consciente e procurado, mas também pouco a pouco, quase sem que se perceba, dia
após dia, infidelidade atrás de infidelidade, omissão após omissão, uma
incoerência depois de outra, deixando primeiro de comungar, depois de
participar da Missa, depois de rezar, enfim, depois abandonando tudo.
Permanecer em Cristo significa também algo
de positivo, isto é, permanecer em “seu amor” (Jo 15,19). Primeiro no amor que
ele tem por nós, mais do que o amor nosso por ele; significa, por isso,
permitir que ele nos ame, que nos passe sua “linfa”, que é seu Espírito,
evitando colocar entre nós e ele os obstáculos da autossuficiência, da
indiferença e do pecado.
Jesus insiste sobre a urgência de
permanecer nele fazendo-nos entrever as consequências fatais da separação dele.
O ramo que não permanece unido à videira seca, não frutifica, é cortado e lançado
ao fogo; não serve mesmo para nada, porque a madeira da parreira
–diferentemente de outras madeiras que, cortadas, servem para tantas
finalidades, é uma madeira inútil para qualquer fim a não ser o de produzir uva
(cf. Ez 15,1ss). Alguém pode ter uma vida muito rigorosa externamente, estar
cheio de saúde, de ideias, produzir energia, negócios, gerar filhos e ser, aos
olhos de Deus , madeira árida, material pronto para ser queimado apenas
encerrada estação da vindima.
Permanecer em Cristo, portanto, significa
permanecer em seu amor, em sua lei; por vezes significa permanecer na cruz,
“perseverar com ele na prova” (cf. Lc 22,28). Mas não “permanecer” somente,
ficando no estado infantil do batismo, quando o ramo tinha apenas brotado ou
tinha sido enxertado; mas antes “crescer” em relação à Cabeça (cf. Ef 4,15),
tornar-se adultos e maduros na fé, isto é, produzir frutos de boas obras.
Para tal crescimento, é preciso ser
podados e deixar-se podar: podará todo o que der fruto, para que produza mais fruto
(Jo 15,2). O que significa que o poda? Significa que elimina os brotos
supérfluos e parasitários (os desejos e apegos desordenados), para que
concentre toda sua energia numa só direção e assim cresça de verdade. O
agricultor fica muito atento, quando a parreira se carrega de uva, para
descobrir e cortar os ramos secos ou inúteis, para que não comprometam a
maturação de todo o resto. É uma grande graça saber reconhecer, no tempo da
poda, a mão do Pai e não se queixar, nem reagir desordenadamente fazendo-se de
vítimas perseguidas nem se sabe de qual desgraça.
Vós já estais puros pela palavra que
vos tenho anunciado, dizia Jesus a seus discípulos (Jo 15,3). O Evangelho que é
palavra de Deus em Jesus Cristo é, portanto, uma poda e representa a ascese
fundamental do cristianismo. Ele corta as ambições (o dinheiro com seus
satélites, a carne com suas concupiscências), tudo, enfim, o que nos dispersa
em tantos projetos vãos e desejos terrenos; fortifica ao invés, as sãs energias
espirituais; fixa nossa atenção nos verdadeiros valores, colocando em crie os
falsos. A Palavra de Deus revela-se de verdade como uma espada afiada, de dois
gumes, nas mãos do podador (Ap 1,16).
Nesta luz, devemos esforçar-nos para ver
não apenas nossos sofrimentos individuais – lutos, doenças, angústias que
afligem a cada um de nós ou a nossa família – mas também o grande e universal
sofrimento que oprime nossa sociedade e o mundo inteiro, inclusive o mais
misterioso de todos, que fere os inocentes. Faz anos que nos debatemos numa
crise que mostra nossa impotência em colocar paz e ordem na convivência civil,
encontrar um acordoe pôr fim ao ódio e à violência. É esta também uma poda
necessária ao orgulho e à presunção humana. Talvez Deus esteja procurando, com
todos os modos, nos fazer entender que sem ele nada podemos fazer (Jo15,5).
É uma lição, esta, que uma sociedade facilmente
esquece, logo que consegue ficar por algum ano sem guerras e sem grandes
tragédias. O espírito de Babel- isto é, a pretensão de sozinho construir a
casa-está sempre nos tentando. Nós ouvimos tanto de nossos chefes fazer
programas muito ousados, acabando cada discurso prometendo paz, justiça e
liberdade; mas tudo isto como se dependesse exclusivamente deles, ou, na melhor
das hipóteses, da boa vontade de todos; como se não precisasse absolutamente
referir-se ao Evangelho e a Deus para poder manter certos valores, compreendido
o mais elementar de todos, que é o respeito à vida; como se o ódio pudesse ser
vencido de uma forma diferente do amor; como se a vida de Cristo na terra
tivesse sido um luxo e algo supérfluo, e não, ao invés, uma necessidade
absoluta de salvação para todos. Tudo isto é uma tremenda ilusão que Deus nos
deve tirar, de outra forma voltaríamos a ser pagãos como antes de Cristo. E para
eliminá-las Deus não precisa nos enviar duros castigos; basta-lhe deixar-nos
agir sozinhos e depois nos fazer observar, entre ruínas e choro, aquilo que
sozinhos fomos capazes de fazer. Se o Senhor edificar a casa, em vão trabalham
os que a constroem (Sl 127 [128],1